
Comunidades denunciam bloqueio a mangues e igarapés na Ilha do Caju após chegada de empreendimento de luxo e projeto de “carbono azul”.
Pescadores e catadores da região do Delta do Parnaíba afirmam estar enfrentando barreiras de acesso às praias, igarapés e manguezais da Ilha do Caju, em Araioses (MA), após a instalação de uma empresa ligada ao turismo de alto padrão e a um projeto de descarbonização marinha. As comunidades estimam que cerca de 2 mil famílias dependem diariamente dos recursos pesqueiros do entorno para alimentação e renda.
Segundo relatos reunidos pela AmarDelta (associação de comunidades da Resex Marinha do Delta), seguranças armados teriam impedido a coleta e a pesca em áreas tradicionalmente usadas pelos moradores, com ameaça de apreensão do produto e constrangimentos durante abordagens. Em um dos episódios descritos em ata, pescadores relatam perseguições em manguezais e até a retenção de caranguejos.
Aforamento limitado e bens de uso comum
A Superintendência do Patrimônio da União (SPU/MA) ressalta que o contrato de aforamento firmado com a Ilha do Caju LTDA, em 2022, restringe-se a 252 hectares dentro de uma ilha de aproximadamente 9 mil hectares — e não alcança praias, manguezais, igarapés e apicuns, classificados como bens de uso comum do povo. Assim, proibições unilaterais ao uso tradicional não têm amparo legal.
O defensor público federal Yuri Costa lembra que a Súmula e leis federais garantem acesso livre às praias e que manguezais são Áreas de Preservação Permanente, cujo uso é coletivo e regulado pelo poder público, não por particulares. Se houver cerceamento com emprego de força privada, diz, pode haver crime de constrangimento ilegal.
Hotel de “pós-luxo” e projeto Blue Carbon
A empresa afirma planejar um hotel de até 50 leitos e a implementação do Projeto Blue Carbon (conservação de ambientes costeiros para créditos de carbono), com execução técnica da Ambipar. Lideranças locais contestam a narrativa de “área vazia” e dizem que o uso sempre foi cotidiano para pesca e cata.
A Ambipar diz atuar apenas no desenvolvimento do projeto e que a iniciativa está em fase preliminar de estudos. A Ilha do Caju LTDA afirma tratar a ilha como “ilha privada”, mas declara que “as demandas da comunidade local estão sendo consideradas” e que a obra do hotel também está em estudos iniciais.
Consulta prévia e o papel do Estado
Para projetos que impactem povos e comunidades tradicionais, a Convenção 169 da OIT determina consulta prévia, livre e informada. Especialistas ressaltam que a condução da consulta é atribuição do poder público, cabendo ao empreendedor fornecer informações, não dirigir o processo. Pescadores afirmam que não houve consulta nos moldes exigidos e que uma reunião foi apresentada como suficiente, o que não atende à norma internacional.
Licenciamento e pendências
Embora a ilha seja de domínio da União, por estar em Área de Proteção Ambiental (APA), o licenciamento é de competência estadual. A empresa alega dispensa com base na Portaria SEMA 123/2015 (empreendimentos de até 50 leitos). A SEMA/MA informa que a dispensa depende de comprovação de baixo impacto e que o pedido está em análise, com pendências técnicas: anuências da SPU e do ICMBio, plano de esgotamento sanitário aprovado e detalhamento das estruturas pretendidas. Até o momento, não houve autorização.
Comunidades x mercado de carbono
A proposta de criar créditos de carbono em áreas de manguezal vem sendo criticada por pesquisadoras e entidades sociais, que alertam para conflitos territoriais quando a “preservação” se traduz em restrição de usos tradicionais. Para elas, manejos comunitários historicamente conservaram esses ambientes; tratá-los como ativos financeiros sem governança inclusiva expulsa quem sempre protegeu o ecossistema.
O que dizem os envolvidos
- Ilha do Caju LTDA: trata a área como “ilha privada”; afirma considerar demandas da comunidade; hotel em fase de estudos; possui alvará e certidão municipal para construir cerca de 1,2 mil m²; aguarda análise ambiental estadual.
- Ambipar: contratada para desenvolver o Projeto Carbono Azul; afirma benefícios ao clima, biodiversidade e comunidades; projeto em estudo.
- Órgãos federais (Ibama, ICMBio, SPU): segundo os relatos, não foram formalmente informados sobre início de obra e implementação do projeto no momento das consultas.
- Comunidades: denunciam cerceamento do acesso, falta de consulta e pressões em áreas de mangue e igarapé.
Próximos passos
Organizações sociais pedem:
- Garantia de livre acesso a bens da União (praias, mangues, igarapés);
- Consulta prévia, livre e informada conduzida pelo poder público;
- Transparência sobre a delimitação exata do aforamento e regras de uso;
- Análise ambiental rigorosa e condicionantes para sanitários, resíduos e energia;
- Mecanismos de governança que incluam pescadores e catadores na gestão do território.
Serviço/Utilidade Pública: denúncias de constrangimento, cerceamento de acesso a bens da União ou crimes ambientais podem ser feitas à SPU/MA, Ibama, MPF e Defensoria Pública da União. Para conflitos que envolvem comunidades tradicionais, solicite mediação institucional e registro formal de ocorrências.